No podcast Retrato Narrado, que produzi com a Rádio Novelo para o Spotify, eu conto a história de quando Jair Bolsonaro, ainda criança, via com inveja os filhos do ex-deputado Rubens Paiva comprando picolés Kibon na pracinha de Eldorado, em São Paulo.
Parece um detalhe menor, mas aponta o começo de décadas de obsessão de Bolsonaro com Rubens Paiva, cujo desaparecimento é retratado no filme Ainda Estou Aqui, com Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva.
Conto resumidamente, em três atos, como essa obsessão se estende por 5 décadas:
Ato 1: Eldorado
Bolsonaro cresceu em Eldorado, uma cidade pacata no Vale do Ribeira, cercada por bananais e territórios indígenas, quilombolas e de proteção ambiental.
Uma das figuras mais proeminentes de Eldorado era Jayme Paiva, dono de terras e duas vezes prefeito da cidade. A escola onde Bolsonaro estudou leva o nome Escola Estadual Dr. Jayme Almeida Paiva.
Jayme Paiva é pai de Rubens Paiva.
Um foi do partido da ditadura.
O outro, deputado cassado pelo regime militar.
Por causa da divergência política, Rubens Paiva raras vezes visitou o pai em Eldorado. Mas, Bolsonaro diz se lembrar bem dos filhos do ex-deputado comendo picolés caros da Kibon na pracinha da cidade, enquanto ele e seus amigos só podiam torcer para achar um palito premiado no chão.
Bolsonaro também lembra de ver as crianças Paiva se refrescavam na piscina da fazenda, inacessível à molecada da cidade. Isto está escrito num livro do senador Flávio Bolsonaro. Segundo me disse o escritor Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens, era impossível ver a piscina da fazenda do lado de fora.
Rubens Paiva foi sequestrado pelos militares, no Rio de Janeiro, no começo de 1971. Meses antes, Eldorado tinha entrado para a história política do Brasil. Mas por outro motivo. Fugindo de uma operação militar, o guerrilheiro Carlos Lamarca, inimigo número 1 da ditadura, passou pela cidade, onde matou um jovem policial.
Este é o mito fundador de Jair Bolsonaro. Aos 15 anos, vendo os tanques do Exército e os soldados uniformizados, decidiu deixar Eldorado para ser militar.
Seu conspiracionismo de extrema-direta também tem raiz na mistura dessas memórias. Durante toda a sua vida adulta, Bolsonaro insistiria, sem provas e contra o que dizem as investigações, que a família Paiva quem financiou e protegeu Lamarca, o guerrilheiro do seu imaginário infantil.
Ato 2: Comissão da Verdade
Bolsonaro entrou pro Exército em 1973 e só saiu de lá na redemocratização, quando a revista Veja revelou que ele tinha um plano de explodir bombas em instalações públicas pra protestar contra os baixos salários. Sempre quis fazer política com bombas.
Em 1986, Bolsonaro saiu do Exército e entrou para a política com os mesmos ideais. Por décadas, poucos o ouviam. Foi eleito e reeleito seguidas vezes como um sindicalista militar — defendia melhores salários para a categoria, mas era mal visto pelas altas patentes do Exército.
O capitão insubordinado só passou a ser um deputado útil aos generais quando a presidente Dilma Rousseff criou a Comissão da Verdade. Foi providencial aos militares ter um porta-voz radical para defendê-los na investigação dos crimes que cometeram na ditadura.

Foi graças à Comissão da Verdade que Eunice Paiva, sua família, e todo o país tiveram a admissão pública do Exército — 40 anos depois! — de que Rubens Paiva tinha sido torturado e morto em instalações militares. Seus restos mortais nunca foram encontrados.
Em 2014, a Câmara dos Deputados inaugurou um busto em homenagem a Rubens Paiva. Bolsonaro interrompeu a cerimônia e deu uma cusparada na estátua na frente da família. Anos antes, ele já tinha contratado a esposa do general acusado da tortura e morte de Rubens Paiva como sua assessora parlamentar.
Não dá pra negar que Bolsonaro sempre foi coerente em sua ideia perversa de que violência é política.
Dois anos depois, Bolsonaro passou a ser chamado de mito nacionalmente — justamente por homenagear o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra no seu voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff, que também foi torturada pelos militares.
Dois anos mais e ele seria eleito presidente da República.
Ato 3: Ainda Estou Aqui
Muita gente jovem está descobrindo agora a história de Rubens Paiva por causa do lançamento de Ainda Estou Aqui, do Walter Salles. O filme ganhou o prêmio de melhor roteiro do festival de Veneza, já teve um milhão de espectadores nos cinemas, e está elegível para concorrer ao Oscar.
O filme conta a história de uma mãe — Eunice Paiva em interpretação sublime de Fernanda Torres — atravessando um tempo sombrio do nosso país, a ditadura, que fechou o Congresso, matou adversários, torturou crianças, causou uma devastação ambiental, e quase dizimou tribos indígenas. Tempo com o qual muita gente flertou ao votar por Bolsonaro em 2018 com a justificativa de que a esquerda é corrupta, antidemocrática e terrorista.
Por dessas coincidências da história, o filme que homenageia Rubens Paiva ganha o mundo ao mesmo tempo em que Bolsonaro é indiciado por tentativa de golpe de Estado e é acusado pela Polícia Federal de ter ciência do plano de envenenar o candidato que o derrotou democraticamente.
Enquanto os caminhos se cruzam, o mundo dá voltas.
Mais detalhes dessas histórias de Eldorado e de como Bolsonaro usou o nome de Rubens Paiva para construir a base do seu discurso como deputado ao longo dos anos (com áudios dos discursos) estão nos três primeiros episódios de Retrato Narrado:
Retrato Narrado é um original Spotify, produzido pela Rádio Novelo com a Revista Piauí. Roteirizado e apresentado por mim, o podcast tem direção de Paula Scarpin e Flora Thomson-Deveaux. Música do Pedro Leal David. Promoção da Mari Faria.
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A série de podcast sobre a origem de Bolsonaro já é um documentário clássico. Imperdível. Fantástico trabalho.
Em entrevista recente, Bolsonaro voltou a falar da infância dele e disse que o filme "Ainda Estou Aqui" deveria começar com ele... é um doente mesmo. Estamos claramente no campo da patologia se tratando do ódio de Bolsonaro contra algumas figuras do progressismo e da esquerda.
Que perfeição de texto.