Na série BoJack Horseman, uma sátira sobre Hollywood, um homem-cavalo-viciado vive a decadência depois de ter sido famosíssimo num sitcom dos anos 90. Numa cena de abertura, BoJack diz que "para muitas pessoas, a vida é apenas um chute longo e forte na uretra". E que, depois de um logo dia apanhando, você só quer "assistir a um programa sobre pessoas boas e simpáticas que se amam, em que não importa o que aconteça tudo vai acabar bem no final de 30 minutos".
O BoJack é inspirado em alguns atores de Hollywood, Matthew Perry entre eles. Friends, em que Perry fazia o Chandler Bing, é exatamente isto: um escapismo. Os seis personagens são falhos e adoráveis, com muito tempo livre para procurar o amor. Eles erram muito, inclusive uns com os outros, mas o vínculo é inquebrável. No final de 30 minutos, tudo acaba bem.
Eu sou viciada em rever episódios em momentos de ansiedade. No especial que eles gravaram 17 anos depois do fim da série, até a paquistanesa Malala Yousafzai, prêmio Nobel da Paz, confessa ser fã. Uma vez, falando com Caetano Veloso (desculpa), ele me disse que também ama ver Friends antes de dormir. A psicologia explica: a familiaridade com o enredo e a repetição do resultado positivo é uma receita que acalma o ser humano desde a primeira infância.
Estou dando essa volta toda só pra registrar - sei lá pra que - o quanto eu gostava do Matthew Perry, que fazia comédia com o corpo todo, tinha o dom do timing, era o rei do tongue-in-cheek, e achou no Chandler o personagem perfeito para seu talento: irônico, auto-depreciativo e vulnerável. Perry tinha uma doença, era viciado em álcool e remédios. Um tempo atrás, disse ter se dado conta de que tinha passado metade da vida em centros de reabilitação e gastado 9 milhões de dólares tentando ficar sóbrio. Viveu sua tragédia em público.
Na abertura de Bojack Horseman, o homem-cavalo-viciado quase morre afogado na sua mansão nas colinas de Hollywood. É um bocado irônico e muito, muito triste que Matthew Perry, um dos atores que mais causou alegria e conforto, tenha fechado seu ato como um personagem que, no fim dos 30 minutos, não conseguiu escapar a si mesmo. We loved you very much, Bing-a-ling.
Perry morreu afogado no dia 28 de outubro de 2023, aos 54 anos, na piscina de sua casa, em Los Angeles, devido aos "efeitos agudos da cetamina", um poderoso anestésico às vezes usado como terapia alternativa para tratar a depressão. Em agosto de 2024, o assistente pessoal de Perry, dois médicos e outras duas pessoas foram acusados criminalmente por fornecerem cetamina a ele. Esta reportagem do NYTimes conta a Dor dos últimos dias de Matthew Perry.